Mundo em metamorfose e o extremo climático no RS
- Bruno Teixeira Peixoto

- 18 de set.
- 6 min de leitura

Os extremos do clima e os seus trágicos efeitos no Rio Grande do Sul parecem indicar transformação "Copernicana" naquilo que entendemos como mundo e seus problemas locais, regionais e globais.
Diante das crises estruturais (ainda em curso) em 468 municípios gaúchos, com centenas de mortes e extensos danos causados em razão de chuvas extremas e enchentes históricas, inevitável é a pergunta sobre em que mundo vivemos e como entender (e superar) estes problemas?
Embora as respostas sejam também complexas, existem perspectivas em torno delas que parecem apontar radical alteração sobre conceitos sociológicos, econômicos, políticos e jurídicos, condições que são decisivas à compreensão desta nova realidade/"normalidade" de mundo que se apresenta.
Sim, esta newsletter é voltada às discussões sobre Direito, agenda ESG, Governança e Compliance. No entanto, nunca aqui será desconsiderado o contexto da realidade política, social e humana em que vivemos. Do contrário, de nada adiantarão teorias, agendas e instrumentos jurídicos e regulatórios.
"Vivemos em um mundo que não está apenas mudando, mas está se metamorfoseando. Trata-se de um estágio de transformação mais radical, em que velhas certezas da sociedade moderna estão desaparecendo e algo novo e inimaginável emerge. Há alguns agentes dessa metamorfose, sendo as mudanças climáticas um dos principais, de modo a alterar a nossa maneira de estar, viver e agir sobre ele através da ação social e política." (BECK, 2018).
O trecho é da obra "A Metamorfose do Mundo: novos conceitos para uma nova realidade"1 (Zahar, 2018, p. 16/17), do sociólogo alemão Ulrich Beck, falecido em 2015. Autor também do icônico best-seller global "Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade"2 (Editora 34, 2010), traduzido para dezenas de línguas e que influenciou gerações de intelectuais de diversas áreas.
Para Beck, todas as instituições humanas estariam de algum modo fracassando. Ninguém ou nada seria decisivo o bastante no enfrentamento do risco climático global, a despeito de esforços de especialistas, ativistas e setores sociais.
Estes fracassos, como vemos, ainda não são reconhecidos como tal, estão ligados a efeitos colaterais do próprio "modelo de desenvolvimento supostamente exitoso e modernizador", gerador de cada vez mais riscos e impactos sinérgicos ao planeta, às pessoas e à segurança e bem-estar social.
Segundo Beck, a emergência do clima e seus extremos locais, regionais e globais agem essa metamorfose da realidade vivenciada. Isso gera um modo diferente de estar e ver o mundo e fazer política, como estamos testemunhando no Brasil e no mundo. A elevação dos mares pelo aquecimento planetário está alterando as linhas geográficas e as ocupações humanas. Os extremos de seca e precipitações subvertem as estações do ano. A capacidade de resposta é diminuta frente aos danos causados por extremos do clima. Assim, haveria uma alteração recíproca entre sujeito e objeto, entre mundo e sociedade que o ocupa.
Metaforicamente, é como a lagarta ao se tornar borboleta, ocorre à revelia do sujeito atingido, às avessas dos referenciais da sociedade humana e de suas instituições, teorias e normas políticas e econômicas. Em grande parte, é "revelia" agravada por obscurantismos e negacionismos.
Como podemos ver e constatar essa metamorfose do mundo? Para Beck, basta somarmos os problemas ambientais, climáticos, econômicos, sociais e políticos para os quais não há respostas institucionais.
Pensemos no seguinte: as teorias sociais, econômicas, políticas e jurídicas vigentes são suficientes para categorizar e descrever esta metamorfose da realidade atual? Provavelmente, cada uma dessas áreas, em suas epistemologias universalistas vigentes, excluem e agravam todo esse cenário.
Não há mais o que discutir: a emergência do clima é uma força econômica e social manifestamente perturbadora. Realça dilemas não resolvidos no caminho, como desigualdade social, humana, territorial e política, que seguem sonegadas em foros decisórios públicos ou privados.
Em termos sociológicos, a luta de classes sociais, com a metamorfose do mundo, transforma-se em conflito de classes de riscos, riscos climáticos e existenciais que atingem todos os nichos da sociedade, mas com intensa diferença quando são comunidades periféricas, como na região metropolitana de Porto Alegre-RS, redefinindo a discussão de igualdade socioeconômica.
Conforme Beck, a emergência climática, como processo físico, deve ser lida como um poder redistribuidor de desigualdades sociais radicais, que pressiona e desafia conceitos-chave políticos e sociais, tornando-os anacrônicos e vazios perante a magnitude e a intersecção dos problemas. Como reorientar as mínimas políticas sociais neste cenário? Estarão nelas abarcados os crescentes refugiados/migrantes climáticos na realidade urbanística brasileira?
Em termos econômicos, esta metamorfose deixa clara a "conta" a ser paga por um modelo de produção e consumo carbonizado, poluidor e nada sustentável, para o qual a natureza é um dos demais objetos/bens de mercado, ignorando-se as leis naturais determinantes para a produção desses bens e serviços.
A secular "fé" no crescimento econômico via "inesgotabilidade de recursos naturais" é esmagada por cenários catastróficos de extremos climáticos como no RS. O quanto dessa visão - ainda reinante em foros políticos e privados no Brasil e no mundo - gera, agrava e universaliza o motor dessa metamorfose do mundo?
Essa crença econômica "modernizante" seguirá a negar a mutação ecológica, climática e antropológica em curso e a privilegiar a eficiência financeira no lugar da internalização das "externalidades negativas" ambientais e climáticas?
Em termos políticos, a ação das instâncias públicas decisórias (indiferentemente aos vieses ideológicos) ainda é pensada em um mundo abaixo de 1ºC. Não apenas se duvida da Ciência do Clima e da obrigatória intersecção da pauta climática como vetor de desenvolvimento, como ainda se afirma que emissões de gases de efeito estufa devem ser compensadas e não zeradas. Há políticas municipais que veem "árvores como causadoras" de deslizamentos (sic).
Em termos jurídicos, pensemos sobre qual paradigma de desenvolvimento a aplicação de nossas leis e instrumentos legais ainda é norteada? Será que toda e qualquer flexibilização de regras ambientais e urbanísticas, em atividades poluidoras e ocupações urbanas ou rurais, no mínimo, controversas, promoverão as quimeras de "eficiência e desburocratização"? Não nos esqueçamos de que riscos e danos ambientais, climáticos e de desastres, em suas causas e efeitos, no tempo e no espaço, não respeitam a "coisa julgada".
É nesse contexto de rupturas, metamorfoses e "tipping points" que compromissos sociais, econômicos, políticos e jurídicos, de Poderes Públicos (Federais, Estaduais e Municipais) e de setores privados e empresariais, dependerão, como nunca, da indiscutível variável climática e de sua devida consideração no financiamento, concepção e execução de políticas e iniciativas.
Apesar de tudo isso, Ulrich Beck, na mesma obra sobre a teoria da "Metamorfose do Mundo", sugeriu contornos "otimistas". Um deles seria a emancipação à catástrofe, dados os cenários pela Ciência para os próximos anos. Isso nos remete a um "catastrofismo emancipatório" e "catarse social", pois não restam dúvidas sobre o que precisamos fazer em termos de ressignificação em políticas e regulações, como mitigação, adaptação e a resiliência climáticas.
Para outro sociólogo, o francês Bruno Latour, na obra "Onde Aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno"3 (Bazar do Tempo, 2020), não compreendermos os últimos cinquenta anos sem colocarmos no centro das análises a questão do clima e a sua degeneração. Devemos "aterrar" o conteúdo das pautas atuais, integrando a emergência do clima a toda e qualquer ação social, econômica, política ou jurídica, de ordem pública e privada, se o que se deseja é a sobrevivência de um estágio civilizacional nesta planeta finito.
A metamorfose do mundo (Beck) e a mutação social e ecológica (Latour) demonstram a necessidade de traduzirmos, ressignificarmos e reorientarmos o "curso das coisas" em termos públicos (bens e serviços, tecnologia, infraestrutura, proteção social, regulação territorial, prevenção a desastres, mitigação, adaptação e resiliência climática, controle e incentivos a atividades e empreendimentos) e também em relação à área privada, esta que, de uma vez por todas, deve obedecer a padrões de governança e gestão baseados nos riscos e impactos ambientais, climáticos, sociais e de governança (ESG).
Devemos saber que a ordem do clima e da natureza, afirma Ailton Krenak, subverte a abstração do "homem como medida de todas as coisas".
A "nova" e imperativa lógica social e política, materializada por extremos como no RS, exigirá, portanto, uma transformação enquanto sociedade e sua consciência sobre o modo de estar e agir em um mundo em metamorfose.



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